
Quando acordou nessa manhã, os raios de sol brincavam por entre as frestas da persiana corrida, cinco linhas de onze tracinhos que se esforçavam por iluminar o quarto. De frente para a janela estava uma cama antiga, de mogno escuro, com formas, esculturas como torres de castelos medievais e mesquitas arredondadas, peças delicadas ou fortes, mundos nascidos do cinzel e do torno e das mãos do carpinteiro.
São sonhos de pessoas que fazem sonhar pessoas.
Ao lado da cama uma só mesa de cabeceira, do lado esquerdo, com um despertador antigo, com as marcas das incontáveis vezes que fora espancado pelo silêncio. Mas através do tempo e da força ele aguentou-se, durou, e as mãos outrora duras afeiçoaram-se a ele, e de murros passaram a festas.
E ele não falhava. Tic... Tac...
Quando acordou nessa manhã, o despertador ainda não tinha tocado, mas o Sol já brincava com as partículas que voavam, só entre as frestas da persiana, como se só a luz as activasse e lhes desse vida.
Quando acordou nessa manhã, continuou a dormir. Não podia acreditar que tudo aquilo fosse real... Mas parece tão real! - pensou...
Por baixo da janela, fora do efeito das tranças que iluminavam o seu espaço, uns olhos sorriram-lhe. Aqueceram-no por dentro. Disseram: Bom dia meu pequeno. Aproximaram-se. Os olhos.
-É isto o fim? - perguntou - Acabou?
- Não, meu pequeno, não é o fim. Tu sabes quem eu sou. Tu sabes o que sou.
Os olhos.
Quando ele acordou nessa manhã, afagou o despertador para o desligar.
Quando ele acordou nessa manhã, abriu a persiana até cima. Chovia. Nessa manhã ele abriu a janela e caminhou à chuva. Sentiu cada gota, saboreou cada segundo. Olhou o Sol por trás das nuvens, por trás do céu, e sorriu.
Nessa manhã, pela primeira vez o fiel despertador não despertou, quebrou, partiu, ruiu.
Nessa manhã o Sol não furou pelas frestas da persiana.
Nessa manhã ele não acordou.
Miguel Encarnação
20 Maio 2008
14h43min