Boa noite.
Muito boa noite..
Hoje vou contar-te uma história. Talvez não seja bem uma história. Talvez seja uma rábula, uma
fábula, uma invenção, um conto, um delírio, uma ilusão, um sonho. Hoje vou contar-te uma história.
Daquelas que não começam por "Era uma vez", daquelas que têm tudo para acabar com
"Viveram felizes para sempre..". Hoje vou contar-te uma história. Mas só se a quiseres criar.
Sim, porque as verdadeiras histórias não são contadas, são vividas, sentidas como se fossem
reais, mesmo quando são fruto da imaginação. São verdadeiras quando colhemos esse fruto com
o cuidado de o plantar para que dele possam nascer mais e mais visões, mais criações, mas
histórias.
Hoje vou contar-te uma história.
É a história de um menino. Ele gostava de subir às cerejeiras no Verão e saborear os primeiros
frutos. Ele gostava de fugir ao dono do pomar. Ele gostava de fugir. Ele gostava. Ele era o rei.
Ele corria, saltava, vivia, sorria, chorava, ganhava, perdia.
Ele contava histórias, ele inventava memórias, ele gozava com o riso, ele ouvia os murmúrios da
natureza e sentia o doce calafrio da incerteza que antecedia o milagre. Ele corria.
A adrenalina era a sua irmã, a coragem a sua mãe, o destemor o seu pai. Ele ERA a aventura.
Um dia tudo tremeu.O seu mundo abalou, os seus alicerces transformaram-se de rochas imóveis
em areias movediças. O seu centro de gravidade desapareceu, ele caiu para o céu, tudo mudou.
Ela chegou.
Ela chegou , inesperada como os aguaceiros de Verão. Ela chegou e ele não estava preparado.
Ela chegou, e ele deixou de ser o rei.
Quando ele a olhou pela primeira vez, nada o poderia ter preparado para o choque. Sentiu-se nu,
envergonhado, diminuido. Sentiu-se menor. Sentiu o sabor das cerejas sumarentas nos lábios,
sentiu de novo o toque suave da brisa marítima no seu intimo, sentiu que uma revolução estava a
rebentar no seu âmago, sentiu.
Quando o seu olhar se cruzou o destino interveio e ele desapareceu. Ela não soube ver o que
julgava imaginar. Ele não soube criar o que sonhava mostrar. Eles viram-se, não como queriam
ser, mas como eram de verdade. Os seus seres únicos, inequívocos, individuais, deixaram de o
ser. Eles olharam-se mas não se viram. Pressentiram-se mas não chocaram. Eles ouviram em
cada som os seus passos. Eles desejaram em cada toque um abraço. Ao longe, eles fecharam os
olhos. Baixando a cabeça eles sonharam. Sonhando eles voaram. Voando deram as mãos. E de
repente acordaram. E ao longe. Sempre ao longe. Cada um escutou... E viu-se reflectido num
murmúrio. Ao longe, eles fecharam os olhos. Reconheceram-se. E marcaram-se um ao outro com
a tinta indelével do sentimento e do instinto.
Hoje vou contar-te uma história.
Talvez não seja bem uma história.
Depois daquela tarde, nenhum outro dia foi o mesmo. Ele voltou a subir às cerejeiras, mas os
primeiros frutos eram para ela. Ele fugia, sempre para ela, às vezes por ela, nunca dela.Ele não
era o rei, mas ela era a sua princesa. Depois daquela tarde, nenhum outro dia foi o mesmo. Ela fingia não o esperar assim que o seu coração se acalmava por o ver chegar. Ela vestia a saia vermelha e pensava nas cerejas que ele lhe traria mais tarde. Os frutos eram o seu dote. Ela não sabia o que era o mar, a que sabia o luar sobre a sua pele até àquele verão. A noite caía e todo o universo era ele, o céu estava negro sem estrelas, pois as estrelas tinham ido buscá-lo e tinham ficado esquecidas no seu olhar.
O seu olhar.
O seu olhar era tudo. Fora num olhar que tudo começara. Num olhar.
Ela vestia a saia vermelha. E lembrava-se de quando brincava. Ela vestia a saia vermelha, e
deixava de ser ela, passava a ser dele. A inocência não é mais que a primeira cereja que ele colheu para ela. Ela recorda o sabor da primeira cereja. Ela sente o seu aroma suave. Ela lembra-se. Ela sabe. Que depois daquela tarde, nenhum dia foi o mesmo.
Uma noite ele não chegou. Ela esperou. Ela escutou. Mas a noite que era sua não lhe trouxe o
que ela pediu, não lhe ofereceu a outra parte de si.
Uma noite ele não chegou.
Uma noite ela não estava lá. No final do seu labirinto. Nessa noite, nem a Lua o ajudou. As estrelas perderam-se nos seus olhos e não o guiaram.As estrelas perderam-se.
Uma noite.
Nessa noite tudo se dissolveu, mundos nasceram e ruiram, e ele gritou. Ele soltou a sua alma em
busca dela. Ela gritou. Ela clamou pela sua própria identidade perdida nele. Nessa noite, a Lua não subiu acima das nuvens, ficou ali, bem baixa, testemunha da dor e da separação. Nessa noite, eles superaram os seus limites e tornaram-se humanos. Não mais rei e princesa, simplesmente ele e ela. Nessa noite o Sol não quis nascer. Mas o destino interveio e a madrugada trouxe com ela o brilho das cerejas acabadas de colher. E eles viram, eles olharam e acreditaram. Eles sentiram fome e pararam de olhar em volta. Fecharam os olhos. Como naquela tarde. Deram um passo atrás. E chocaram. Costas com costas, ambições com atitudes. O início de um abraço.
Que os voltou para o futuro.
Nessa manhã eles separaram-se sem temor. Nessa manhã ele não sabia para onde ia. Mas sabia que tinha para onde voltar. Essa manhã, foi a primeira de todos os dias. Essa manhã foi a primeira. De todos os dias.Do resto da sua vida.
Talvez não seja bem uma história.
Talvez seja.
Mas só se a quiseres criar.
Miguel Encarnação
2h27min
3 Junho 2008
3 comentários:
Brilhante, brilhante, brilhante.
Adorei....dei por mim parecendo uma criança a ouvir uma história de embalar...
pareceu-me algo como o livro que acabei hoje chamado "O Deus das Pequenas Coisas" de Arundhati Roy.
(ESpero que ainda continues a colher sempre os primeiros frutos da árvore, meu amigo.)
Um beijo.
Entre ter pc e nao ter pc acabei por não comentar.
Gostei muito já te tinha dito... Consegue-se imaginar cada pormenor da história que retratas, mas mais do que isso, consegue-se "criar a história" a partir do que escreves...
Beijo**
Adorei esta historia... fez-me lembrar em livros q li... acho q tens talento e q poderias continuar... ja te o tinha dito!!! :-D
Beijinhos
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